A
literatura não tem mais utilidade
Sílvio Ramiro
Ser
professor de literatura (ou de qualquer outra arte) em tempos em que o imediatismo,
o utilitarismo e o consumo ditam as relações humanas não é tarefa fácil (muitas
vezes, nem prazerosa é – e aí, perde-se o sentido, porque a relação com a arte,
antes de tudo, precisa ser mediada pelo prazer). No mundo atual, parece que
tudo precisa ter uma utilidade imediata, por isso perguntas como “professor,
isso vai servir pra que na minha vida?” são tão comuns no ambiente escolar.
Muitas
vezes, concordo com os alunos. Por exemplo: saber que uma oração é subordinada
substantiva objetiva direta reduzida de infinitivo não muda nada na vida de
ninguém. Saber que a figura de linguagem utilizada pelo poeta é um oxímoro não
faz sentido nenhum. Oxímoro é apenas um nome, e poderia ser outro qualquer.
Entretanto,
um bom professor de literatura (e, talvez, esse tipo de profissional esteja
silenciado) é capaz de fazer com que o aluno (ou leitor) entre no texto por
outros vieses. Lembro-me exatamente do dia em que tive uma iluminação em uma
aula de literatura, quando fazia cursinho pré-vestibular e ainda achava que
faria Engenharia Mecânica.
O
professor Adriano Bitarães dava aula sobre “Grande sertão: veredas”, obra do maior
escritor brasileiro, Guimarães Rosa. Não sei se por minha sorte ou azar, esse
livro fazia parte dos indicados pela UFMG para o seu processo seletivo. Adriano
não fazia uma leitura linear da obra, falando de estilos de época, dando nomes
a figuras de linguagem, enchendo o quadro de chatices estilísticas, ele
analisava o romance dando a ele o valor que à arte merece ser dado. E todo
mundo, numa sala de 120 alunos, ficava impressionado com a análise feita por
ele (não por acaso, fui fazer Letras).
O
professor falava das (supostas) contradições presentes no discurso de Riobaldo,
o personagem central da obra, que a constrói por meio de um monólogo, como
forma de encontrar conforto para questões existenciais de extrema complexidade.
Riobaldo vive num eterno dilema, que lhe retorna sempre, querendo saber se o diabo
existe ou não existe, por causa de um pacto que teria feito com esse tal
coisa-ruim. Se o diabo existir, o pacto também há de existir. Mas se o diabo
não existe, não haveria pacto e o protagonista estaria, então, livre de um dos
seus dramas metafísicos.
Entretanto,
para essa pergunta de Riobaldo, não há resposta. Em momento nenhum da obra
chega-se a uma conclusão, tanto que ao final é dito: “O diabo não há! É o que
digo, se for... Existe é homem humano. Travessia.” Mesmo nesse final, que, a um
olhar ingênuo, parece definitivo, Riobaldo tenta afirmar que o demo não existe,
mas logo depois diz “se for”, evidenciando o eterno retorno da dúvida, da
angústia. O medo é o que permeia toda a obra e, por isso mesmo, é o que
impulsiona a travessia da vida de Riobaldo. A contradição Deus-diabo, existir-não
existir, pacto-não pacto não se
resolve no romance de Rosa, nem na mente de Riobaldo e (acredito eu) nem na
mente de qualquer ser humano. A dúvida é o que move nossa existência. Viver é muito perigoso.
Numa
análise chinfrim da obra, um professor de literatura poderia colocar o aluno
diante de questões (do tipo “faça o que se pede”) que o levassem a encontrar
antíteses, oxímoros, paradoxos na obra de Rosa, e, sem dúvida, ela estaria
cheia de termos que se contrapõem e que constroem esse tipo de figura de
linguagem. Por sorte, tive um professor que não queria isso de mim e me fez
perceber que, para além do oxímoro (que é tratado, geralmente, em apêndices
gramaticais), há contradições humanas que acompanham nossa existência e para as
quais nós nunca teremos respostas definitivas.
É
uma pena ter de dar sentido utilitário para a literatura. É uma pena perder o
prazer do texto, perder toda a organização que a arte pode promover para nossos
dilemas, sem nos dar lições de moral ou respostas prontas. É uma pena ter de
ler literatura procurando dar nome aos bois.
O
papel da arte e da literatura talvez seja este: encher nossa mente de
perguntas, sem nos levar a respostas. No entanto, em nossa realidade, consumir
tornou-se a forma mais imediata de preencher esses vazios existenciais. Não há
mais espaço para perguntas sem resposta. Não há mais tempo para reflexão. E a
literatura, nesse contexto, não tem mais utilidade.
No tempo em que o mercado é o ditador das regras, arte para quê?
ResponderExcluirA literatura, como toda forma de arte, poe o ser humano diante de si e isso implica, entre outras sensibilidades, em dor, tristeza... coisas mesmo de ser humano, mas não há tempo para ser humano no tempo do mercado.
No tempo em que o mercado é o ditador das regras, arte para quê?
ResponderExcluirA literatura, como toda forma de arte, põe o ser humano diante de si e isso implica, entre outras sensibilidades, em dor, tristeza... coisas mesmo de ser humano... acontece quer não há tempo para ser humano no tempo do mercado.
ABSOLUTAMENTE FANTÁSTICO.
ResponderExcluirSilvinho, assim como você, senti-me provocada pelas análises do professor Adriano. No meu vestibular também teve Guimarães Rosa, "O recado do morro". Foi maravilhoso, talvez tenha sido também para mim um dos primeiros convites à arte da escrita, à Literatura... Tenho que lembrá-lo que foi Laudelim, o músico, quem conseguiu transmitir a Pedro Orósio o conteúdo do recado que o Morro da Garça o enviara... Que a arte guie seus passos nessa contra-caminhada pelo mundo.
ResponderExcluirEsse conto/novela de Rosa, Raíza, é genial... coloca a música numa instância de semi-consciência coletiva, como capaz de transmitir saberes ocultos entre os povos!!! Maravilhoso mesmo...!!!
ResponderExcluirAberta a cerveja...
ResponderExcluirGosto de arte. Tentar fazer arte por não saber escrever ou não dar conta de expressar em palavras o que vai em minha alma. Na verdade, não dou conta de me expressar nem mesmo através da própria arte. Tudo junto é fonte de muita angústia e de um eterno e lento labor. Eterno e lento buscar. E assim, retorno sempre ao processo da arte. Processo este que, se encontrar alguma solução definitiva, – porque as momentâneas existem e são as que fazem com que tudo seja sempre uma fonte de prazer – acabaria. Ainda bem que não há respostas definitivas!
A literatura/arte do ponto de vista de nossos alunos pode mesmo exigir o peso da questão utilitária. A vantagem de tudo é que, por outro lado, do ponto de vista do artista, sempre existirá uma alternativa, um desvio, uma brecha, uma saída, uma porta mágica, uma pincelada que irá fazer com que tudo valha à pena. Você, que já está trilhando tão fantasticamente este atalho, aproveite bem a viagem!
......... Se eu soubesse escrever não desenharia!