Movimento Cultural não precisa de alvará
Como força de sede e saudade na
última marcha de carnaval, o folião não arredava pé da praça. Protagonizavam
entre a porta da igreja-santuário e as costas do palanque, que minutos atrás
suportava as reboladas dançarinas. Nominados Bloco do Boi Bravo cantarolavam as
marchas que já não muito agradavam ao povo, por não serem novatas nem batidas.
Comandados por um sujeito coxo,
tocador de soprofone de poucas notas, os festeiros, entre crianças e avós,
alguns bêbados, outros tontos, melodiavam contratempos quase involuntários. Os
de mais vontade martelavam bizarras percussões, algumas improvisadas,
outras, mesmo perfeitas, distintas de época de carnaval.
Apesar de não serem de passados
atrás, quando, de primeiro, carnaval ainda era festa do povo, pareciam gostar
das enferrujadas músicas, com poucas variações e letras triviais. O senso do
som parecia não ser o mais sedutor, mas a liberdade de melodiar. Tocavam ricos,
dançavam pobres, comandavam sujos, curtiam limpos.
- “As
águas vão rolar...”
Mas o que sobrou de rompante
silencioso foi a marcha inesperada da garbosa milícia! Eram quatro, três de
outras bandas, reforço de evento, apenas um da terra. Também este alguma
diferença fazia? Pois como se de fora fosse, nada sabia de festejo popular
regional. O que falou foi só:
-
Alvará só até três horas. Já não pode tocar! Cantar também não pode!
Falado o dito, ainda ameaçaram
algemas e a apreensão dos instrumentos.
Os festeiros tentaram diplomacia,
falaram de tradição, de cultura, de alegria, de bom fim de festa. Mas a lei era
clara:
- Alvará
só até três horas! Barulho não pode! Música não pode! Marcha não pode!
Justamente era três horas o fim do
show da BandaBahia, moderna, de som e de visual. Depois dela mais ninguém.
Podia ter por encerrado o carnaval, com hora marcada. O que não fazia senso
entre boa parte do folião, principalmente os que escutavam dos antigos os
causos de folia.
Já
de cima da cacunda de um do bloco, o soprador de soprofone manco entoou verso
maior:
-
Movimento Cultural não precisa de alvará!
Fez ordem para os em redor, virou
grito – de guerra:
-
Movimento Cultural não precisa de alvará! Movimento Cultural não precisa de
alvará! Movimento Cultural não precisa de alvará!
Uma minoria mirrada foi embora, não
por desejo, mas por medo. Uma outra assistia sentada calada, não por desejo,
por cantar em silêncio. Mas eram os poucos que figuravam o movimento, sem
alvará, com poder de tradição deficiente.
No entanto, para os milica, a
tradiçao não tinha senso, nem assinatura de autoridade. O poder é que pode.
Papel assinado, ordem acatada.
- O que
é marchinha de tradição perto de força de gás, rapaz? Resmungou
o chefe-tenente marchando na direção dos menores.
Ordem mandada pros mandados. Só
gássssss!
A multidão, grande sem quantidade,
não pôde outro meio: foi calada e dispersada. Ardeu nos olhos. Tampou a
güela. Manchou a cara: vergonha e alergia. Nublou a praça. Mancou a
marcha. Xispou quem assistia.
Estava desarmada a algazarra do
Bloco do Boi Bravo e armada a da garbosa milícia, que representou honrada o
papel mandado. Na verdade, não fingiram. Era o corriqueiro de festa de milica.
Impuseram cassete. Por fazer questão, deixaram o uso dele a um mais aprazerado
na dor. Houvesse grito e gemido: houvesse satisfação.
Esvaziados os espaços, saíram
lotadas as viaturas. Dois milicas, quatro meninos, em cada. As sirenes ligadas:
í ô í ô í ô, num timbre e num compasso deslocados de outras marchas.
Cada qual com seu cada qual
carnaval.
Pra trás, na escada da praça, restou
indizível o soprofone sem notas, nem desafinadas como as de antes, e o cassete,
maciço e firme. Além de confete, sangue e serpentina – e um senhor, que, do
canto do coreto, espiava as inesperadas cenas. Antes de sair, escapou do limite
do seu silêncio:
- Nem
não mataram os menino, nem não morreram memória. No muito, no momento.
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