sexta-feira, 29 de junho de 2012

Movimento Cultural não precisa de alvará



       Como força de sede e saudade na última marcha de carnaval, o folião não arredava pé da praça. Protagonizavam entre a porta da igreja-santuário e as costas do palanque, que minutos atrás suportava as reboladas dançarinas. Nominados Bloco do Boi Bravo cantarolavam as marchas que já não muito agradavam ao povo, por não serem novatas nem batidas.
         Comandados por um sujeito coxo, tocador de soprofone de poucas notas, os festeiros, entre crianças e avós, alguns bêbados, outros tontos, melodiavam contratempos quase involuntários. Os de mais  vontade martelavam bizarras percussões, algumas improvisadas, outras, mesmo perfeitas, distintas de época de carnaval.
         Apesar de não serem de passados atrás, quando, de primeiro, carnaval ainda era festa do povo, pareciam gostar das enferrujadas músicas, com poucas variações e letras triviais. O senso do som parecia não ser o mais sedutor, mas a liberdade de melodiar. Tocavam ricos, dançavam pobres, comandavam sujos, curtiam limpos.
            - “As águas vão rolar...”
            Mas o que sobrou de rompante silencioso foi a marcha inesperada da garbosa milícia! Eram quatro, três de outras bandas, reforço de evento, apenas um da terra. Também este alguma diferença fazia? Pois como se de fora fosse, nada sabia de festejo popular regional. O que falou foi só:
            - Alvará só até três horas. Já não pode tocar! Cantar também não pode!
            Falado o dito, ainda ameaçaram algemas e a apreensão dos instrumentos.
            Os festeiros tentaram diplomacia, falaram de tradição, de cultura, de alegria, de bom fim de festa. Mas a lei era clara:
            - Alvará só até três horas! Barulho não pode! Música não pode! Marcha não pode!
            Justamente era três horas o fim do show da BandaBahia, moderna, de som e de visual. Depois dela mais ninguém. Podia ter por encerrado o carnaval, com hora marcada. O que não fazia senso entre boa parte do folião, principalmente os que escutavam dos antigos os causos de folia.
Já de cima da cacunda de um do bloco, o soprador de soprofone manco entoou verso maior:
            - Movimento Cultural não precisa de alvará!
            Fez ordem para os em redor, virou grito – de guerra:
       - Movimento Cultural não precisa de alvará! Movimento Cultural não precisa de alvará! Movimento Cultural não precisa de alvará!
           Uma minoria mirrada foi embora, não por desejo, mas por medo. Uma outra assistia sentada calada, não por desejo, por cantar em silêncio. Mas eram os poucos que figuravam o movimento, sem alvará, com poder de tradição deficiente.
           No entanto, para os milica, a tradiçao não tinha senso, nem assinatura de autoridade. O poder é que pode. Papel assinado, ordem acatada.
       - O que é marchinha de tradição perto de força de gás, rapaz? Resmungou o chefe-tenente marchando na direção dos menores.
          Ordem mandada pros mandados. Só gássssss!
         A multidão, grande sem quantidade, não pôde outro meio: foi calada e dispersada. Ardeu nos olhos. Tampou a güela. Manchou a cara: vergonha e alergia. Nublou a praça. Mancou a marcha. Xispou quem assistia.
         Estava desarmada a algazarra do Bloco do Boi Bravo e armada a da garbosa milícia, que representou honrada o papel mandado. Na verdade, não fingiram. Era o corriqueiro de festa de milica. Impuseram cassete. Por fazer questão, deixaram o uso dele a um mais aprazerado na dor. Houvesse grito e gemido: houvesse satisfação.
          Esvaziados os espaços, saíram lotadas as viaturas. Dois milicas, quatro meninos, em cada. As sirenes ligadas: í ô í ô í ô, num timbre e num compasso deslocados de outras marchas.
           Cada qual com seu cada qual carnaval.
         Pra trás, na escada da praça, restou indizível o soprofone sem notas, nem desafinadas como as de antes, e o cassete, maciço e firme. Além de confete, sangue e serpentina – e um senhor, que, do canto do coreto, espiava as inesperadas cenas. Antes de sair, escapou do limite do seu silêncio:
            - Nem não mataram os menino, nem não morreram memória. No muito, no momento.



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